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domingo, 23 de janeiro de 2011

A DOR - Andrea Muroni


- Estou com uma dor no céu da boca...
- Hããã?
- É. Dor no céu da boca. Na verdade é uma espécie de queimação, tipo uma azia buco-celestial, sabe ? Desde ontem.
- De onde é que você tirou isso?
- Como assim de onde tirei isso? De mim, ué, do meu corpo. Provavelmente
dos meus centros nervosos. Sou uma mulher sensível, pô!
- Você está louca.
- Louca por quê? Me dê uma razão, uma unicazinha, que comprove que meu
céu da boca não possa doer.
- Ah, razão, assim, baseada em fatos concretos, eu não tenho não; mas é que nunca ouvi falar em alguém que tenha tido dor no céu da boca.
- Nunca ouviu porque é uma inculta.
- Se você vai levar a conversa pra esse lado...
- Desculpa, foi apenas uma constatação. Veja só, eu tenho uma amiga, por exemplo, que vira e mexe tem dores nas sobrancelhas.
- Você está me tirando...
- Não estou, não. Não é sempre, ela me disse, mas periodicamente as suas sobrancelhas doem.
- Imagine, isso é tudo conversa mole.
- Não estou entendendo porque tanto ceticismo. E gratuito, heim?! Analisemos: as sobrancelhas ficam no rosto, não ficam?
- Ficam.
- E no rosto, por trás da pele, têm veias com sangue, não?
- Tem, mas o que é que tem a ver a veia com a dor?
- Como o que é que tem a ver?? Tem tudo a ver. Ainda mais que as sobrancelhas são vizinhas das têmporas que são, todo mundo sabe, muito sensíveis.
- Você já está delirando. Pra mim essa conversa não faz o menor sentido.
- Claro que faz, Val. Suponhamos que a raiz da sobrancelha encrave ou até quem sabe inflame, heim, heim? Não vai doer, é?
- Encravar vá lá, mas inflamar? Por que diabos haveria de uma raiz de sobrancelha inflamar?
- E eu é quem sei? Quem sou eu, nesta vida de mistérios, para decifrar os recôncavos segredos do corpo humano? Os desconhecidos caminhos pelos quais...
- Tá bom, tá bom, cancela a metafísica. Mas, me diga, e o céu da boca?
- Ué, também faz parte do corpo humano, tem pele e por trás da pele têm veias...
- Lá vem você com essa história de veias de novo. E o que é que faz doer? Não venha me dizer que é um dente encravado...
- Tsc, tsc, tsc, assim não há a menor condição de continuar a conversar com você. Quer saber? Vou desvendar, e vai ser agora, quais são todos os mecanismos que movem a dor pelo espetacular corpo humano e comprovar a minha teoria.
Depois de alguns minutos, ela volta, absorta, um dicionário entre os braços.
- Ahá! Ouça bem o que vou lhe dizer: “Dor: sensação desagradável, variável em intensidade e em extensão de localização, produzida pela estimulação de terminações nervosas especiais.” Heim? Pegou?
- Peguei o quê
- Como o quê?
- É só isso?
- Só isso, só isso, que é que você queria?
- Ué, pra quem saiu daqui toda emplumada, clamando aos quatro ventos que iria desvendar todos os mecanismos da dor e sei lá o que mais, me aparece agora com uma reles definição.
- Reles não senhora, que esse dicionário é conceituadíssimo.
- Está bom, mas e daí? Que raio isso tem com o céu da tua boca?
- Nossa senhora, heim? A gente também que explicar tudo, dá licença. Presta um pouco de atenção, se for possível. “(...) variável em extensão de localização” hãã?, “produzida pela estimulação de terminações nervosas especiais.”
- ???
- Bingo! É isso. Terminações nervosas especiais. Veja bem, não são quaisquer terminações nervosas, são somente as especiais.
- E quem disse que há terminações nervosas no céu da tua boca, quanto mais especiais? Ou lá na sobrancelha da fulana tua amiga?
- Nossa, como ás vezes é difícil conviver com a ignorância alheia. É claro que há terminações, senão não haveria de doer. Capitte?
- Mas pra mim não dói mesmo, acho que isso é tudo fruto dessa tua imaginação desarvorada. Mas suponhamos, olha só, eu não estou concordando com essa sandice, estou só considerando uma situação hipotética, suponhamos que realmente sua teoria tenha cabimento, essas tais terminações nervosas seriam estimuladas por...
- Comida. Só dói quando eu como. Não toda vez que como, mas tudo começou com um doce de figo, sabe, e depois até um caldinho lá que tomei me doeu e... peraí.
- Que é que foi agora?
- Olha só, olha o que achei aqui no dicionário: “Dor cansada: dor surda.”
- O ouvido está doendo também agora? Ou será o lóbulo? Já sei, já sei, encravou a cartilagem.
- Continuando: “Dor surda: dor que nem é forte nem aguda. Dor cansada”
- Santo deus, onde vai dar esse papo? Diga aí, Sherlock, qual a grande nova conclusão?
- Essa é a descrição perfeita da minha queimação. Não dói nem forte nem aguda porque é dor cansada. Claro, só pode ser isso. A dor quer doer mas está lá meio cansada, com preguiça, então não vai doer uma cabeça ou um dente, que dão muito trabalho, sabe como é, acaba doendo mesmo um céu da boca ou uma sobrancelha que são mais fáceis, né? Dói mas não é aquela coisa assim de dor. Eu acredito que ela tenha cumprido o seu papel. É. É dor, tem de doer, doeu. Assim, simples.
- Minha nossa, você endoidou de vez.
- Endoidei nada, faz muito sentido.
- Faz, faz sim. Então é isso, tá? A conversa está muito boa, deveras construtiva, mas eu já vou indo.
- Já, tão cedo...
- Pois é, meu bom senso está começando a doer.
- Cética.Maluca.


Andrea Muroni - poeta e pessoa linda, moradora de Mogi das Cruzes e mãe do Marcelo Sabiá, amiga de longa data que temos outros amigos em comum. http://muronicomacucar.wordpress.com/author/muroni/

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

AS MULHERES QUE NUNCA TIVE PELO MEU MELHOR AMIGO: Suellen


Suellen é a caçula da sua família, nasceu quando ninguém mais imaginava gritos e choro de criança na casa. Obteve da vida toda generosidade que ela pode dar. Tinha todos os brinquedos da moda além dos infinitos assessórios pra brincar de casinha. Tudo que queria tinha e não era preciso dividir com ninguém. Mimada e tratada como pedra preciosa, sempre se achou o centro do mundo. Todos deviam servi-la como haviam feito pais, irmãos e parentes. Achava que o mundo era sua casa e ela era a caçula do mundo. Suellen é delicada, parece àquelas mocinhas do século XIX, tem uma pele branca, cabelos pretos e olhos castanhos médio. Essa delicadeza em feição e modos são seus elementos de sedução, qualquer um ao vê-la, imediatamente frágil, logo se aproxima pra auxiliá-la. Foi assim que meu amigo se chegou, ela carregava compras do mercado, ele pediu pra ajudá-la, trocaram algumas palavras e logo procuraram afinidades. Não demorou muito pra ela virar dona do seu universo, conhecendo suas principais amizades, gostos preferidos, lugares prediletos, mexido na sua agenda e pedido pra confessar todos os seus segredos. Aos poucos Suellen isolou meu amigo de suas convivências, nada de botecos, visitas alongadas na casa de amigos, nada de novidades. E as mulheres? Nem pensar, ele se via obrigado a sempre olhar para o chão. Havia ficado sem solo. Um homem hidropônico, só era nutrido pelos seus sentimentos, em gotas controladas. Suellen não sabia cuidar, vigiava, controlava e determinava. Seu desejo de tê-lo sempre, sufocava-o, construindo um clima de permanente desconfiança. Ele, por tudo que já falamos em outras passagens, jamais conseguiria colocá-la no centro do seu mundo. Fez isso nos primeiros encontros, mas como flerte, nunca meu amigo egocêntrico suportaria alguém no centro fora ele mesmo. Suellen é um tipo de Felícia, não se importa com os outros, ela transforma todos em brinquedos para sua alegria. Passado uns dois meses, meu amigo parecia um gato infeliz, judiado por uma criança chata. Suellen era ciumenta, mas esse não era seu maior defeito, afinal como diz Paula Nei: “O ciúme tem o seu cabimento: é a pimenta do amor." Mas no caso de Suellen não se trata disso, é algo mais doentio, uma necessidade compulsiva de ser umbigo, única, uma síndrome de debutante. Suellen um dia adoeceu e quase ninguém foi visitá-la e, meu amigo parou no primeiro boteco que encontrou... ( A. Z. Silva)

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

A arte de perder - Elisabeth Bishop


A arte de perder não é nenhum mistério;
Tantas coisas contêm em si o acidente
De perdê-las, que perder não é nada sério. Perca um pouquinho a cada dia.
Aceite, austero, A chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.
Depois perca mais rápido, com mais critério:
Lugares, nomes, a escala subseqüente Da viagem não feita.
Nada disso é sério.
Perdi o relógio de mamãe.
Ah! E nem quero Lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.
Perdi duas cidades lindas.
E um império Que era meu, dois rios, e mais um continente. Tenho saudade deles.
Mas não é nada sério.
– Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo que eu amo) não muda nada.
Pois é evidente que a arte de perder não chega a ser mistério por muito que pareça (Escreve!) muito sério.

AS MULHERES QUE NUNCA TIVE PELO MEU MELHOR AMIGO: Orlanda

Ela era inverno na espinha. Olhos grandes, pescoço alongado, seios feitos no compasso, postura de bailarina. Boca de querer morar nela. Cheiro de flor  orvalhada depois de noite de Lua cheia. Esguia, sensual como as personagens pintadas por Gustav Klimt. Cabelos longos que contornavam a doce e delicada face. Ela era verão na idéia. Fervilhava, alvorossava, vestidos curtos, saltos longos e um copo de vodka Absolut na mão. Mexia, fascinava, bolinava os pensamentos. Querer criou um novo sentido. E foi no primeiro beijo que o coração do meu amigo foi fisgado com anzol de ponta afiada, penetrante, apanhando-o facilmente feito um peixe de lábios grossos. Não ofereceu resistência. Tudo era seu antes daquele beijo. Santa dose de paralisia. O peito parecia explodir, o suor escorria. Sabe aquela sensação de tilintar de sinos no ouvido? Aos poucos ela ia oferecendo um pedaço do seu corpo. Aos poucos o corpo dourado ia sendo desnudo. Aos poucos as marcas de dias na praia saltavam aos olhos e a impressão de folear uma revista Playboy se fazia presente. Aos poucos ela desabrochava. Aos poucos o seu corpo tomava sentido no dela. A boca salivava diante daquela cena e ele quase precisava de ajuda para poder olhar. Foram vorazes, trocaram palavras ao pé do ouvido como se ja se conhecessem. Os corpos tocaram suas músicas em vários ritmos e tons. Ela era outono nos olhos, como o amarelar das folhas das árvores indicando a passagem das estações. Ela era uma misteriosa vontade de querer ir e ficar. Enigma daqueles que nos fazem acordar e dormir pensando. E vieram noites, dias e tardes de consumação sem compromisso. Ela era primavera em seus passos, reflorescendo caminhos, reinventando prazeres antes experimentados. Ela era a canção "SE" do Djavan e era vento e... suspensão de ar. Ela era Orlanda. (J.S.)