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terça-feira, 23 de agosto de 2011

Glória - Luís Fernando Veríssimo

Luís Fernando Veríssimo - O Estado de S.Paulo
O médico espera até Rogério se recuperar da notícia que acaba de receber. Rogério consegue se controlar e pergunta:

- Quanto tempo?
O médico tenta desconversar. É difícil especificar com precisão. Essas coisas variam. Não dá para dizer...
Rogério insiste:
- Quanto tempo de vida eu tenho, doutor?
- Poucas semanas - diz o médico.
Rogério sai do consultório atordoado. Poucas semanas! E ele tão moço. Injustiça, pensa. O nome daquilo é injustiça. Por que eu? Por quê?
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Rogério se tranca no seu apartamento. Não recebe ninguém. Não dorme, não come. Passa o tempo todo com o olhar fixo na parede, pensando na injustiça que será a sua morte. Chora. Se embebeda. E então se lembra de uma coisa que seu amigo Marçal disse. Que queria morrer em cima de uma mulher, levando um tiro do marido ciumento. Marçal até elaborara: um tiro ou dois. Claro, pensou Rogério.
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Claro! Uma morte gloriosa. Pra que esperar a morte sem reagir, sem arquitetar seu próprio fim? Seria sua maneira de enganar a morte, morrendo antes. E gloriosamente. Num ato vital, afirmando o seu vigor, afrontando a injustiça do seu fim precoce e deixando, para os amigos, uma legenda de amante trágico.
Sim, iria morrer em cima de uma mulher.
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O Marçal, a princípio, acha aquilo uma loucura.
- Que loucura é essa?
Mas acaba concordando em ajudar o amigo. Planejam tudo. Para começar, precisam escolher a mulher. Mas mais importante do que a mulher é o marido. Que marido eles conhecem que mataria um amante da sua mulher? Garantido? Concluem pelo Rafa, marido da Soraia. O Rafa era truculento. O Rafa tinha porte de arma. E, uma vantagem adicional, a Soraia não era de se jogar fora.
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Rogério não tem muito tempo para conquistar Soraia. Poucas semanas. Ajuda o fato da Soraia estranhar a nova personalidade do Rogério, que parece mais soturno. Mais sério, ele que sempre fora tão brincalhão, tão superficial. Parece um condenado. E Soraia acha aquilo atraente. Encontram-se duas ou três vezes. E Rogério a convence a ir ao seu apartamento. Enquanto a espera, liga para Marçal, que deve dar um telefonema anônimo para o Rafa e avisar que sua mulher o está traindo, na rua tal, número tal. Soraia chega ao apartamento. Rogério finge que esquece a porta aberta, para o Rafa poder entrar. Os dois vão para a cama. Nisso toca o telefone. É o médico, para avisar que houve uma troca de radiografias e Rogério não vai morrer, afinal. E Rogério ouve a porta do apartamento sendo aberta.

http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,gloria,761494,0.htm

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

AS MULHERES QUE NUNCA TIVE PELO MEU MELHOR AMIGO: Denise



Já olhou para um sorriso que parece pintura? Um olhar que dá frio na espinha? Um rosto que te encanta cada vez que olha pra ele? Foi assim que Denise, fora descrita. Trabalhava vendendo óculos de sol, perto da estação de trem. Gentil e educada, aparentava seus vinte e poucos anos e atendia à todos com uma cortesia que era só sua. Tinha uma doçura envolvente. De pouca estatura mas de curvas admiráveis! Na mão direita um anel de prata que brilhava, mas, não afastava os olhos do meu amigo. Sempre bem vestida, de maquiagem nos olhos, embelezava aquela loja sem graça. Ele sempre passava por ali mas nunca havia notado, a jóia exposta, como naquela “Segunda-Feira” de Julho. Exigente na escolha, fitou um tempo a vitrine, pra ver se algum óculos chamava a sua atenção. Nada viu que valesse a pena, mas aproveitou pra olhar a moça mais um pouco. Na Terça contou os minutos até a hora do almoço. Entrou na loja com felicidade e pediu a opinião sobre alguns modelos. Ela lhe mostrou todos os óculos que achava que iria ficar bom nele. Acabou saindo sem levar nenhum, mas, sabendo o nome dela. Na Quarta ele já tinha a certeza do que queria! Na frente da vitrine esperou que ela olhasse, acenou pra moça, e, pra sua surpresa, ela devolveu um oi e um tchauzinho. Talvez ela fizesse isso pra todos, já que atendia tanta gente e dificilmente lembraria do rosto de tantos. Mas ,ele, saiu dali irradiante, pensando: Ela é linda até a vida melhorar!!! Quinta-Feira ele tava decidido a falar qualquer coisa com ela: pedir seu número de telefone, dizer da sua admiração, comprar um óculos mesmo que não tivesse gostado, convidá-la pra sair, falar sobre o tempo. Chegada a hora foi ao encontro da sorte. Mas diz ae, dia de pagamento, qualquer loja enche, qualquer vitrine fica cheia de caroços, nos caixas eletrônicos e lotéricas as filas estão gigantes, e meu amigo teve coragem de abordá-la no meio dos clientes? Aquele momento era muito íntimo pra ele. Não queria correr o risco de comentários alheios, um possível “não” da pretendente, ou o papo ser interrompido com alguém pedindo opinião: “Quanto custa este moça”? ou “Qual ficou melhor em mim”? Ai que dia triste e longo! - me contou. Ela tava lá, tão perto dele, com um sorriso capaz de mudar a ordem do mundo e ele empedido pela timidez e precaução que lhe tomou conta. E foi na sexta feira, de um céu azul e poucas nuvens, de um ar batendo no rosto volta e meia, recheado de fotos daquela vendedora nos seus pensamentos, que ele, deu um jeito de sair mais cedo, disposto a esperar quanto tempo fosse, até que ela estivesse sozinha na loja, para então poder dizer: Te ver faz o meu dia ficar mais feliz! Aquele seria o dia perfeito... a não ser pelo fato de ser surpreendido com uma placa na vitrine: PRECISA-SE DE ATENDENTE (MOÇA) MAIOR DE 18 ANOS, COM OU SEM EXPERIÊNCIA!  (J. S.)

terça-feira, 26 de julho de 2011

AS MULHERES QUE NUNCA TIVE PELO MEU MELHOR AMIGO: Cristina

Cristina era tinto, adorava poesia e vinho. Tive a certeza ao ver tantas rolhas guardadas na casa do meu amigo e da história contada por ele. Chegavam perto de 80. Não perguntei quanto tempo ficaram juntos, mas imaginei: Devem ter tomado uma garrafa a cada encontro, logo, se viram 80 vezes! Mas se estavam com mais sede podem ter tomado duas, então a conta caía pra 40. E se a conversa ficou mais apimentada, ou a vontade de pecar foi maior, poderiam ter tomado vinho escorrido e consumido 3 ou 4 garrafas em cada encontro. Fiquei sem jeito de perguntar essas coisas, mas deve ter percebido que eu fazia contas e sacou logo dizendo: “Nem sempre tomávamos vinho, mas na maioria das vezes bebíamos vendo um filme, conversando ou fazendo comida”. Cris é garrafa de vinho de contornos longilíneos, de se perder na extensão verticalizada, embora vinho, para continuar bom, precise ser armazenado em posição horizontal, e, sua melhor performance eram em locais de baixa luminosidade. Ela é assim, sempre a meia luz, intensidade de embebedar rapidamente, quem não a conhece se perde, quando a conhece, aprecia. Ela é festa para todas as vontades de um homem, disparo de gosto para todos os sentidos, fantástica plasticidade e veneno sinuoso. É como um bom vinho, recheado de partículas de suspensão que não são visíveis através do vidro, sendo preciso sorvê-lo completamente para sentir-se digno como um rei. Mas o ritual predileto dela era ouví-lo recitando. Era assim: ele tinha que chegar às 21 horas em ponto, depois das muitas atividades cotidianas. Não havia data certa, mas no dia que recebesse uma mensagem em seu celular, deveria ir ao seu encontro. Na mensagem constava apenas “o nome de um país”. A partir daí sabia o que fazer, corria à estante, visitava as suas antologias e já sofria, porque o martírio era rasgar a página do livro com a escolhida. A pessoa era incisiva, dizia: “O poema tem que ser ofertado, é como tomar uma garrafa de vinho, não tem mais volta”. Era uma sincronia entre recitação e degustação: pausas, aromas, intenções, paladar, metáforas, embriaguez, ritmo, brinde, voz ao pé do ouvido e letargia plena!  Rolhas e poesias em potes. Ela, ficava com as páginas amassadas dos poemas lidos, ele, levava as rolhas pra casa. Me disse sorrindo: dei a volta ao mundo em em 80 rolhas amigo! - mas só me contou do Chile, recitando Neruda: Bebo vinho do teu corpo / Devagar e quase a medo / Na surpresa dos segredos / Copos cheios de prazer”... Boca a boca, beijo a beijo! (J. S e A. Z. Silva)

25 mil acessos - no Contos de Todo Mundo

quinta-feira, 21 de julho de 2011

AS MULHERES QUE NUNCA TIVE PELO MEU MELHOR AMIGO: Olga ou Iolanda


  Mulher Sexy
 Tinha nome de filme nacional ou de música conhecida. Fiquei na dúvida se seu nome era Olga ou Iolanda, talvez porque ela era muitas em uma. O nome nessa história não é tão importante quanto os fatos. Eduardo Galeano no “Livro dos abraços” fala algo como: “Se é verdade, ou não, toda história passa a ser real no momento em que está sendo contada”. Meu amigo me contou que na primeira vez que se viram, errou todo um roteiro que estava decorando para uma apresentação escolar. Estudaram juntos  no ensino médio. Ele já estava naquele colégio desde o fundamental, ela, veio transferida não se sabe de onde, mas apareceu num dia de aula, e de repente estava lá, presente e chamativa, de poucas palavras mas de flertes fatais, dos que desnorteiam, que te pegam desprevinido e te deixam sem jeito. Quando bateu os olhos na criatura a perna bambeou. De lá em diante, todos os intervalos passaram juntos, rindo de tudo. Nessa época meu amigo morava com seus pais, nem tão conservadores, mas protetores em demasia ao ponto de acordarem de madrugada para esquentarem a comida imaginando que ele havia chegado com fome. Descobria a vida e os prazeres com ela, perdendo a hora de chegar em casa, de acordar pra ir trabalhar, de contar as horas pra chegar na escola. Mas todo ano letivo acaba, assim como uma partida de futebol, um campeonato, um pacote de salgadinho, um livro que te prende. Passada a formatura se viram uma ou duas vezes. Veio a faculdade, novos amigos, novos caminhos e a figura, sumiu, como se tivesse desaperecido na névoa de Paranapiacaba depois das 5 da tarde. E virou um ano, outro, outro e mais 8. Num dia de sol numa praça no centro da cidade, com prostitutas cansadas e de idade avançada abordando trabalhadores, vagabundos e gente de toda sorte, de ambulantes vendendo tudo que se possa imaginar (cd, dvd, comeu morreu, Jesus me chama), de charlatões com seus ungentos, de pregadores evangélicos gritando até perderem a voz, batendo na bíblia e dizendo: todo mundo tem que ter as Sagradas Escrituras em casa, leiam a biblia ao invés de gibis... ela passava em frente a banca de jornal... fiquem atentos com os lobos pois o mundo está cheinho deles... ele fixou seus olhos, quase desacreditando no que via... convencem as ovelhas a tirarem sua lã e quando as tem somem, deixando-as com frio ao relento... já não tinha mais dúvida, foi ao seu encontro. Sedução não é despertar o desejo no outro? A criatura nascera com esse dom, seduzia com facilidade, por meio do andar, do olhar, da fala: Oi, quanto tempo! E o perfume veio junto com o abraço. Cabelo pintado, escovado, roupa colada, insinuante como sempre. Parecia que o tempo não tinha passado e que nunca estiveram distantes a não ser pela aliança de ouro na mão esquerda denunciando que alguém no tempo de ausência havia tomado o lugar que um dia achou que seria seu. Foram a um bar, tomaram uns copos, conversaram sobre a vida e não voltaram ao trabalho. Os celulares tocaram, voltaram a tocar e a tocar de novo, e, se não ouviram, fingiram, terminando o horário de expediente num quarto. Contatos não trocaram, novo encontro não marcaram, deixando a esmo qualquer nova possibilidade. Estavam saciados. Parecia que suas carências haviam sido acertadas. O táxi chegou, meio corpo no carro entrou, celular na mão, um olhar de despedida com um beijo no ar, fecha a porta,  ele fita sua silhueta indo embora, enquanto ela diz com voz doce ao fone: Amor, estou chegando! (J.S. e A.Z. Silva)

sexta-feira, 27 de maio de 2011

O diabo veste calça

Hoje o demônio passou por mim, não vestia saia, usava calça colada, não tinha olhos vermelhos e nem fedia a enxofre, eram seus olhos verdes e possuía um perfume de jardim. Como é do conhecimento de todos: o demônio tem muitas faces, mas esse tinha uma que eu gostava muito. Ele não era discreto, passava e todos sabiam que estava presente, sua energia era tamanha que sentíamos sua presença a passos de distância. Dava uns calafrios, era um misto de adrenalina ativada pelo medo e pelo desejo de aventura. Como todos sabem não espero mais a visita do cramunhão na minha vida, pois num dia de sol vendi minha alma para ele por 3 cervejas geladas, portanto, não há motivo algum para ele se travestir de qualquer ser para vir ter comigo. Assim sendo, vi o tal se passar ao lado, sabia que era ele, na sua melhor forma, sabia que não era comigo e como todo covarde, não fiz nada para chamar atenção. Pois bem, tinha sentado próximo um jovem, bonitinho e em condições de uso, nada que merecesse o que ia em sua direção. Já tinha observado que bebia e meio que fazia uma prece, era visível sua infelicidade e indignação por algo. Em dado momento, olhava para o infinito cheio de desesperança. São em momentos assim, que pessoas rogam e pedem coisas. Acho que aquele demônio ia atender alguma prece dele. Pois minhas suspeitas se confirmaram, ele foi em sua direção, aquele vento cinematográfico agitava seus cabelos dourados, seu decote hipnotizava o rapaz e sem nenhuma explicação ele sentou-se ao seu lado, pediu um copo e bebeu com a sede de quem pecou, roçou sua perna na dele e ele de imediato sorriu com a alegria de um fiel que teve seu milagre atendido.  Ah, inferno! E eu vendi a minha alma só por três cervejas.(A. Z.)

terça-feira, 24 de maio de 2011

AS MULHERES QUE NUNCA TIVE PELO MEU MELHOR AMIGO: Rosália



A Rosália tem a graciosidade do seu nome. É uma mulher elegante na forma, afetuosa, carinhosa, cuidadosa. Ela está livre, seus olhos graúdos tem um cintilante que os tornam mais belos. Ela parece possuir a fosseta loreal, substância que permite a cobra perceber a temperatura ao seu entorno, simplificando, ela está quente e sentindo o calor, ela está na pista. Essa postura que libera cheiros, humores e hormônios, é uma espécie de cartão de visita da fêmea. Ela fica visível, sai do obscurantismo monótono da monogamia. Quem primeiro a percebeu foi um bombeiro, coincidência? Não, sensibilidade de ofício, ela arde. Mas para entender seu presente, é preciso saber seu passado de brasas em cinzas. Só teve amores mornos, os últimos homens faziam dela labareda em lareira. Mas ela sempre quis atear fogo no mundo. Não teve muita sorte, por muito tempo não cultuaram bem sua centelha, para se livrar desses “iceman's" perdeu de tudo um pouco: dinheiro, alegria e seu próprio tempo. Mas tudo a preparou para o momento que viria, esse momento leve, de auto-estima elevada, desejada e desejante, uma mulher voando baixo e de brasa acesa. Uma mulher madura e segura de si, que quer brincar, viajar, quer curtir e amar. Acho que vou apresentá-la ao meu amigo, ele tem a química perfeita para sua combustão, afinal, preciso de mais história para contar. E Ro rende excelente prosa e verso. (A.Z.)

AS MULHERES QUE NUNCA TIVE PELO MEU MELHOR AMIGO: Valquíria



Ele estava indo ao trabalho, atrasado como sempre. Chamou um taxi mas a previsão de espera era mais de 30 minutos. Resolveu ir caminhando, também de sua casa ao serviço, com largas passadas não dava 20 minutos. Era uma manhã linda, clara, com um vento batendo no rosto, poucas nuvens no céu, crianças brincando na rua, uma infinidade de carros passando de um lado para o outro. A cabeça estava na lista de coisas que tinha para resolver. Mentalmente ia priorizando seus afazeres mais urgentes. Óculos escuro no rosto, olhar longe, uma mochila nas costas e de repente ouve um – Bom dia moço, pode me ajudar, por favor? Sem nem ter ouvido direito, pára, olha a moça de cima a baixo, com a boca entreaberta, balança a cabeça e acena -  sim. Ela era dona de uma voz linda, de um perfume inebriante e muito bem vestida. Chamou-o para ajudar em sua mudança. Não foi preciso explicar nada e nem porque não tinham ajudantes junto ao motorista do caminhão. Atravessou a rua, adentrou o portão, desceu os degraus até a porta de entrada e carregou cada um dos poucos móveis que ali existia. Esqueceu-se do trabalho, compromisso, de horário, esqueceu-se do mundo. Entre subidas e descidas de escada ele a devorava com os olhos, feito cachorro olhando a máquina de frangos rodando na padaria, mas tomava cuidado para que  ela não notasse. Ledo engano. Além dela já ter percebido, fazia questão de ir na frente, de subir os degraus com calma, de rebolar mais do que o de costume e volta e meia virar o rosto dirigindo uma palavra ou outra: Você caiu do céu moço, nem sei como te agradecer! Ele sabia como queria ser agradecido, e aquele ar aparente de  moça casta não o convencia. Não demorou muito para carregar o caminhão, já estava em seus braços o últmo objeto, um puff de couro que ficava em frente a tv na sala da pequena casa. Ele entregou ao morotista que estava dentro da caçamba amarando a mudança de forma a realizar o transporte com segurança, quando ela lança mais uma: - Escuta moço, você pode descer comigo, queria ter a certeza que não estou esquecendo nada! Não exitou em aceitar o convite. Foram conversando, passaram o limite da porta de entrada da sala e ali mesmo ela teve certeza que havia esquecido de carregar na mudança aquele beijo. Meu amigo me contou que até hoje não voltou a vê-la. Sabe-se dela o nome, Valquíria, que escreveu num pedaço de papel junto a um número de telefone que sempre está desligado. Fora isso não esquece do seu cheiro, sua voz, da forma como estava vestida e da boca que no dia daquela mudança transportou seus pensamentos! J. S.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

AS MULHERES QUE NUNCA TIVE PELO MEU MELHOR AMIGO: Amanda


A inveja que tenho do meu amigo, não poderia ser eternamente passiva e contemplativa. Inveja, mesmo a “branca”, faz de nós seres menores. Amanda, foi a maior prova da minha fraqueza. Quando a vi pela primeira vez, meu mundo fez pausa. Me apareceu como um banquete posto com todos os meus pecados prediletos. Seus olhos emoldurados por uma maquiagem leve e cintilante, deixava seu olhar mais agatiado. Tinha uma cor e boca cabocla, cabelos pretos intensos alisados à moda do momento. Ela não ornava com ele. Seus olhos vendiam sua alma pervertida. Tinha uma volúpia contida, parecendo que iria entrar em erupção a qualquer momento. Meu amigo já teve mulheres intensas, mas essa tinha algo a mais, que ninguém sabia, até se perder naquele mar de olhos castanho claro penetrante e ser tomado pelo seu sorriso vadio. Levei tempo pra ver outras partes do seu corpo, ficava preso ao rosto, mas saibam, que o resto era proporcionalmente encantador: mãos, pés, coxa, bunda, barriga. E os seios? A tempo de serem colhidos por mãos fortes e delicadas! Não podia ser as dele, a obssessão que nesse momento já tinha me consumido exigia que fossem as minhas. Ela seduzia quem ela queria e o resto do mundo ao seu redor. Fui eu fisgado, encantado, amaldiçoado, contaminado, paralisado por ela, mas ELE havia sido primeiro. Agora tínhamos um problema, dividí-la. Eu estava disposto a cortar quantas cabeças fossem necessárias, feito a rainha de copas de Alice pra ficar com ela. Por Amanda, morreria, mataria e até perderia… a amizade do meu melhor amigo. Pergunto: quantas mulheres valem algo tão genuíno? Amanda valia! Estava determinado, tinha perdido noites elaborando um plano que parecia quase infalível: a roubaria dos braços dele, daria uns tapas caso resistisse, conspiraria uma vida inteira para que não ficassem juntos ou desistiria, o que seria o mais provável. Porém meu amigo, experiente na arte de seduzir e abandonar, percebeu a minha cegueira, retirou-se para uma  anti-sala, sentou-se, abriu um pacote de amendoim japonês e como um voyeur assitiu eu me perder amadoramente na maciez daquela pele. Sumi por semanas... e quando voltei dei-lhe um beijo fraternal e agradecido! Nunca mais falamos no assunto, quer dizer, em dias de bebedeira rimos de forma leve e isolada, sem cobranças, sem críticas, sem ressentimentos. Ele já  reconquistou-a quantas vezes quis, a diferença é que agora não me chama mais pra sair com eles. (A. Z. e J. S. )

domingo, 23 de janeiro de 2011

A DOR - Andrea Muroni


- Estou com uma dor no céu da boca...
- Hããã?
- É. Dor no céu da boca. Na verdade é uma espécie de queimação, tipo uma azia buco-celestial, sabe ? Desde ontem.
- De onde é que você tirou isso?
- Como assim de onde tirei isso? De mim, ué, do meu corpo. Provavelmente
dos meus centros nervosos. Sou uma mulher sensível, pô!
- Você está louca.
- Louca por quê? Me dê uma razão, uma unicazinha, que comprove que meu
céu da boca não possa doer.
- Ah, razão, assim, baseada em fatos concretos, eu não tenho não; mas é que nunca ouvi falar em alguém que tenha tido dor no céu da boca.
- Nunca ouviu porque é uma inculta.
- Se você vai levar a conversa pra esse lado...
- Desculpa, foi apenas uma constatação. Veja só, eu tenho uma amiga, por exemplo, que vira e mexe tem dores nas sobrancelhas.
- Você está me tirando...
- Não estou, não. Não é sempre, ela me disse, mas periodicamente as suas sobrancelhas doem.
- Imagine, isso é tudo conversa mole.
- Não estou entendendo porque tanto ceticismo. E gratuito, heim?! Analisemos: as sobrancelhas ficam no rosto, não ficam?
- Ficam.
- E no rosto, por trás da pele, têm veias com sangue, não?
- Tem, mas o que é que tem a ver a veia com a dor?
- Como o que é que tem a ver?? Tem tudo a ver. Ainda mais que as sobrancelhas são vizinhas das têmporas que são, todo mundo sabe, muito sensíveis.
- Você já está delirando. Pra mim essa conversa não faz o menor sentido.
- Claro que faz, Val. Suponhamos que a raiz da sobrancelha encrave ou até quem sabe inflame, heim, heim? Não vai doer, é?
- Encravar vá lá, mas inflamar? Por que diabos haveria de uma raiz de sobrancelha inflamar?
- E eu é quem sei? Quem sou eu, nesta vida de mistérios, para decifrar os recôncavos segredos do corpo humano? Os desconhecidos caminhos pelos quais...
- Tá bom, tá bom, cancela a metafísica. Mas, me diga, e o céu da boca?
- Ué, também faz parte do corpo humano, tem pele e por trás da pele têm veias...
- Lá vem você com essa história de veias de novo. E o que é que faz doer? Não venha me dizer que é um dente encravado...
- Tsc, tsc, tsc, assim não há a menor condição de continuar a conversar com você. Quer saber? Vou desvendar, e vai ser agora, quais são todos os mecanismos que movem a dor pelo espetacular corpo humano e comprovar a minha teoria.
Depois de alguns minutos, ela volta, absorta, um dicionário entre os braços.
- Ahá! Ouça bem o que vou lhe dizer: “Dor: sensação desagradável, variável em intensidade e em extensão de localização, produzida pela estimulação de terminações nervosas especiais.” Heim? Pegou?
- Peguei o quê
- Como o quê?
- É só isso?
- Só isso, só isso, que é que você queria?
- Ué, pra quem saiu daqui toda emplumada, clamando aos quatro ventos que iria desvendar todos os mecanismos da dor e sei lá o que mais, me aparece agora com uma reles definição.
- Reles não senhora, que esse dicionário é conceituadíssimo.
- Está bom, mas e daí? Que raio isso tem com o céu da tua boca?
- Nossa senhora, heim? A gente também que explicar tudo, dá licença. Presta um pouco de atenção, se for possível. “(...) variável em extensão de localização” hãã?, “produzida pela estimulação de terminações nervosas especiais.”
- ???
- Bingo! É isso. Terminações nervosas especiais. Veja bem, não são quaisquer terminações nervosas, são somente as especiais.
- E quem disse que há terminações nervosas no céu da tua boca, quanto mais especiais? Ou lá na sobrancelha da fulana tua amiga?
- Nossa, como ás vezes é difícil conviver com a ignorância alheia. É claro que há terminações, senão não haveria de doer. Capitte?
- Mas pra mim não dói mesmo, acho que isso é tudo fruto dessa tua imaginação desarvorada. Mas suponhamos, olha só, eu não estou concordando com essa sandice, estou só considerando uma situação hipotética, suponhamos que realmente sua teoria tenha cabimento, essas tais terminações nervosas seriam estimuladas por...
- Comida. Só dói quando eu como. Não toda vez que como, mas tudo começou com um doce de figo, sabe, e depois até um caldinho lá que tomei me doeu e... peraí.
- Que é que foi agora?
- Olha só, olha o que achei aqui no dicionário: “Dor cansada: dor surda.”
- O ouvido está doendo também agora? Ou será o lóbulo? Já sei, já sei, encravou a cartilagem.
- Continuando: “Dor surda: dor que nem é forte nem aguda. Dor cansada”
- Santo deus, onde vai dar esse papo? Diga aí, Sherlock, qual a grande nova conclusão?
- Essa é a descrição perfeita da minha queimação. Não dói nem forte nem aguda porque é dor cansada. Claro, só pode ser isso. A dor quer doer mas está lá meio cansada, com preguiça, então não vai doer uma cabeça ou um dente, que dão muito trabalho, sabe como é, acaba doendo mesmo um céu da boca ou uma sobrancelha que são mais fáceis, né? Dói mas não é aquela coisa assim de dor. Eu acredito que ela tenha cumprido o seu papel. É. É dor, tem de doer, doeu. Assim, simples.
- Minha nossa, você endoidou de vez.
- Endoidei nada, faz muito sentido.
- Faz, faz sim. Então é isso, tá? A conversa está muito boa, deveras construtiva, mas eu já vou indo.
- Já, tão cedo...
- Pois é, meu bom senso está começando a doer.
- Cética.Maluca.


Andrea Muroni - poeta e pessoa linda, moradora de Mogi das Cruzes e mãe do Marcelo Sabiá, amiga de longa data que temos outros amigos em comum. http://muronicomacucar.wordpress.com/author/muroni/

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

AS MULHERES QUE NUNCA TIVE PELO MEU MELHOR AMIGO: Suellen


Suellen é a caçula da sua família, nasceu quando ninguém mais imaginava gritos e choro de criança na casa. Obteve da vida toda generosidade que ela pode dar. Tinha todos os brinquedos da moda além dos infinitos assessórios pra brincar de casinha. Tudo que queria tinha e não era preciso dividir com ninguém. Mimada e tratada como pedra preciosa, sempre se achou o centro do mundo. Todos deviam servi-la como haviam feito pais, irmãos e parentes. Achava que o mundo era sua casa e ela era a caçula do mundo. Suellen é delicada, parece àquelas mocinhas do século XIX, tem uma pele branca, cabelos pretos e olhos castanhos médio. Essa delicadeza em feição e modos são seus elementos de sedução, qualquer um ao vê-la, imediatamente frágil, logo se aproxima pra auxiliá-la. Foi assim que meu amigo se chegou, ela carregava compras do mercado, ele pediu pra ajudá-la, trocaram algumas palavras e logo procuraram afinidades. Não demorou muito pra ela virar dona do seu universo, conhecendo suas principais amizades, gostos preferidos, lugares prediletos, mexido na sua agenda e pedido pra confessar todos os seus segredos. Aos poucos Suellen isolou meu amigo de suas convivências, nada de botecos, visitas alongadas na casa de amigos, nada de novidades. E as mulheres? Nem pensar, ele se via obrigado a sempre olhar para o chão. Havia ficado sem solo. Um homem hidropônico, só era nutrido pelos seus sentimentos, em gotas controladas. Suellen não sabia cuidar, vigiava, controlava e determinava. Seu desejo de tê-lo sempre, sufocava-o, construindo um clima de permanente desconfiança. Ele, por tudo que já falamos em outras passagens, jamais conseguiria colocá-la no centro do seu mundo. Fez isso nos primeiros encontros, mas como flerte, nunca meu amigo egocêntrico suportaria alguém no centro fora ele mesmo. Suellen é um tipo de Felícia, não se importa com os outros, ela transforma todos em brinquedos para sua alegria. Passado uns dois meses, meu amigo parecia um gato infeliz, judiado por uma criança chata. Suellen era ciumenta, mas esse não era seu maior defeito, afinal como diz Paula Nei: “O ciúme tem o seu cabimento: é a pimenta do amor." Mas no caso de Suellen não se trata disso, é algo mais doentio, uma necessidade compulsiva de ser umbigo, única, uma síndrome de debutante. Suellen um dia adoeceu e quase ninguém foi visitá-la e, meu amigo parou no primeiro boteco que encontrou... ( A. Z. Silva)

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

A arte de perder - Elisabeth Bishop


A arte de perder não é nenhum mistério;
Tantas coisas contêm em si o acidente
De perdê-las, que perder não é nada sério. Perca um pouquinho a cada dia.
Aceite, austero, A chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.
Depois perca mais rápido, com mais critério:
Lugares, nomes, a escala subseqüente Da viagem não feita.
Nada disso é sério.
Perdi o relógio de mamãe.
Ah! E nem quero Lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.
Perdi duas cidades lindas.
E um império Que era meu, dois rios, e mais um continente. Tenho saudade deles.
Mas não é nada sério.
– Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo que eu amo) não muda nada.
Pois é evidente que a arte de perder não chega a ser mistério por muito que pareça (Escreve!) muito sério.

AS MULHERES QUE NUNCA TIVE PELO MEU MELHOR AMIGO: Orlanda

Ela era inverno na espinha. Olhos grandes, pescoço alongado, seios feitos no compasso, postura de bailarina. Boca de querer morar nela. Cheiro de flor  orvalhada depois de noite de Lua cheia. Esguia, sensual como as personagens pintadas por Gustav Klimt. Cabelos longos que contornavam a doce e delicada face. Ela era verão na idéia. Fervilhava, alvorossava, vestidos curtos, saltos longos e um copo de vodka Absolut na mão. Mexia, fascinava, bolinava os pensamentos. Querer criou um novo sentido. E foi no primeiro beijo que o coração do meu amigo foi fisgado com anzol de ponta afiada, penetrante, apanhando-o facilmente feito um peixe de lábios grossos. Não ofereceu resistência. Tudo era seu antes daquele beijo. Santa dose de paralisia. O peito parecia explodir, o suor escorria. Sabe aquela sensação de tilintar de sinos no ouvido? Aos poucos ela ia oferecendo um pedaço do seu corpo. Aos poucos o corpo dourado ia sendo desnudo. Aos poucos as marcas de dias na praia saltavam aos olhos e a impressão de folear uma revista Playboy se fazia presente. Aos poucos ela desabrochava. Aos poucos o seu corpo tomava sentido no dela. A boca salivava diante daquela cena e ele quase precisava de ajuda para poder olhar. Foram vorazes, trocaram palavras ao pé do ouvido como se ja se conhecessem. Os corpos tocaram suas músicas em vários ritmos e tons. Ela era outono nos olhos, como o amarelar das folhas das árvores indicando a passagem das estações. Ela era uma misteriosa vontade de querer ir e ficar. Enigma daqueles que nos fazem acordar e dormir pensando. E vieram noites, dias e tardes de consumação sem compromisso. Ela era primavera em seus passos, reflorescendo caminhos, reinventando prazeres antes experimentados. Ela era a canção "SE" do Djavan e era vento e... suspensão de ar. Ela era Orlanda. (J.S.)